domingo, 1 de outubro de 2017

Leitura com Dorian Jorge Freire

                                                                         



A PALAVRA DE DORIAN JORGE FREIRE

DE JORNAIS E JORNALISTAS

Bom demais. Como um sonho. Daqueles que deixam saudade e tornam a realidade menos mesquinha. Jornal livre, independente, sem papas na língua. Brasil, Urgente. Verdade inteiriça. Cabeça, tronco e membros. Sem restrições, sem medo. Sem fantasiá-la de berloques. Que importariam os melindres da Light ou os interesses melados da Cola-Cola? Merda para as indústrias brasileiras da Alemanha, da França, dos Estados Unidos. Merda três vezes para os contatos de publicidade, biltres fresquinhos e ensopadinhos. Não terão importância as suas broncas. Servirão apenas para as chacotas, quando a edição estiver pronta. Nem viriam os gringos, as panças dos gringos, os gritos dos gringos. Nas nossas mesas, os grupos econômicos não esquentariam mais suas ricas bundinhas e seus ovos de ouro.
Agora a defesa da causa dos pequenos, dos que nada possuem, dos que foram despejados e despojados. Para os quais há apenas recusas. Era possível, eu sabia, que a indiferença continuasse. Li - Lênin ou Stalin? - ser preciso promover a classe operária mesmo contra a sua vontade. O amanhã que sucede à noite. Quando tudo parecia rifado, fanadas as esperanças, a madrugada entrava pela janela. Sol novo, luz nova, um claro limpo, enxuto. Poder respirar por inteiro, sem sufocações nem tremores. Nada de poluição ou contágio. Como no tempo de menino.
No tempo de menino, jornal de estudantes. Nele saíram os meus primeiros artigos. Violentíssimos. Os mais velhos acharam fossem de autoria de meu Pai. Enganaram-se: meu Pai sempre escreveu melhor do que o filho, numa prosa disciplinada e asséptica. No jornalzinho, Jaime Hipólito Dantas publicou seus primeiros ensaios, com as primeiras citações de Maritain, Mário de Andrade, e versos de Bandeira. Leme chorou os seus iniciais versos parnasianos, tão incomodamente parecidos com Casimiro e Catulo. Poesia de terra, amores traídos, rosas de sertão, medo da morte. Não vingou. Depois vieram revistas. Uma delas, metida a sebo, imitando o Paratodos de Álvaro Moreira. Jaime e eu escrevíamos quase tudo. Ele, a seção de rádio, notinhas sobre Marlene, Emilinha, Dalva de Oliveira, Ivon Cury. Eu, por trás de Ema, a seção feminina com consultório sentimental. E havia, ainda, colaborações esparsas: Drummond, Jorge Fernandes, Bandeira, Schmidt, Marques Rebelo, Murilo Mendes, Helen Ingerson, Jorge Freire, Vingt-um Rosado, Antonio Pinto de Medeiros, Luis da Câmara Cascudo. A revista agradou, fez sucesso. Mas morreu de fome.
Agora, um jornal. Diário, em cidade enorme, a maior. Sem limitações. Eu não temia a experiência. Mas amedrontava-me estar, face a face, com o sonho concretizado. Liberdade de um lado. Do outro, cristianismo. Não o caricato, desinformado, deformado, egresso de pias sacristias ultramontanas, meio analfabeto. Cristianismo encarnado, autêntico, tipo Alceu Amoroso Lima. "Cristianismo não será toda a verdade jogada aos focinhos dos catolicões?" - perguntava, entusiasmado, Frei Carlos Josaphat. Um homem emocionante, capaz de levantar multidão e provocar revisões de vida.
E ainda havia aquela turma. Sem calos do profissionalismo. Gente boa. O que vira, dizia. O que vira... Criaturas iguais, carne e osso, indistinguíveis na multidão. Não inimigos. Nem desconhecidos. Os contendores que, com ódio ou sem ódio, sabem que vão se pegar, cedo ou tarde, usando de todos os recursos, na disputa de um palmo de chão. De um chão que carece ser defendido, com unhas e dentes. Mais do que amigos, são irmãos. Não acidentais, por determinismo cego na sua origem e surdo ao longo de seu trajeto. Irmãos por inteiro. Pelo mistério da filiação divina. O mesmo Pai. A mesma fé, o mesmo destino de povo eleito. Ligados para a vida e para a morte. Arrebol, sol, futebol.
O próprio Josimar (Moreira de Melo), mais experiente, confessara a sua perplexidade:
- Ou nos salvaremos em penca, ou nos perderemos todos.
Chegara. Aqui e agora. Hic et nunc. Cada um com um só trabalho: meter-se rápido e rasteiro na sua roupa de briga e cumprir, à risca, a sua vocação. A vocação que Deus lhe deu. Sempre esperei. Daí porque às vezes pensava que, outra vez, sonhava acordado, olhos esbugalhados, alucinação de doido manso. Espécie de alumbramento.
Jornalista deve dizer a verdade. Existe para ela. Se não a diz, se a sonega, será tudo - de esperto a canalha - menos jornalista. Não se é jornalista como se é comerciante ou lavador de pratos. Não se compra uma vocação no mercadinho da esquina. Trata-se de missão. Espécie de sacerdócio. Não se amando a verdade ou não se desejando colocar-se a seu serviço, que se procure outra saída - e passe bem. O diabo é que os jornais estão cheios de comerciantes, de industriais, de rufiões. E principalmente de cafajestes. Raros são os jornalistas. Dá para contar nos dedos.
Lembro ontem, o vozeirão de Brito me azucrinando os ouvidos:
- Velho, é preciso entender. Não interessa consertar o mundo, mas vender jornal. Para isso somos pagos, bolas! Ou você será sempre um foca, procurando régua e indo apanhar a calandra?
Vontade de voltar ao passado. Quando lembro o jornal de minha cidade, o jornalzinho do meu Avô, lonjuras do Nordeste, o coração fica deste tamainho. Honrados e pobres, limpos e feios. Sinto ganas de correr ao passado, para pedir perdoem o moleque besta, os seus instintos.
Brito explicava, sem jeito, os olhos envergonhados:
- Não adianta publicar isso. Fulano vai ficar chateado e ele está com uns problemas danados. A mulher doente, estirada numa cama, morre não morre. O genro, sem emprego, em petição de miséria. Vamos lascar o delegado de polícia...
Eu me mordia. Como não? Se aquilo era mentira, não deveria ser publicado em qualquer ocasião, fosse qual fosse o estado de saúde da madame ou mesmo se o cretino do genro fosse um deputado governista, pessedista de quatro costados. Mas se era "a expressão da verdade", a doença da mulher e o azar do rapaz justificariam a transigência ou mudariam a realidade?
Ontem, não falar na Esso, nem na Standart, nem no Jaffet, nem nos banqueiros. Agora, não. Não há ação sem reação. Noite sem manhã. Apertaram, exageraram, abusaram, fecharam o cerco? Tomassem jornal livre nas trombas. Não adiantaria fofocar em grupinhos, mas sim largar a boca no mundo. Dizer de nossa insubordinação.
- Afine a sua pena, que está chegando a hora.
O frei infundia confiança. Ele acreditava, eu acreditava. Os outros acreditavam. Até Josimar acreditava. Daí a invencibilidade. Um prato indigesto para a canalha. Mas era preciso não pensar em vingança. Malhar os pústulas, não
odiá-los. Ou odiar o pecado e amar o pecador, como pregava Agostinho. Não seria fácil...
- Ou nos salvaremos em cacho, ou iremos todos para o inferno.
Roberto Carlos avant la lettre. Chumbo bom com cabra ruim. Cada chumbo haveria de levar uma mensagem, um objetivo. É um grão - pensava - de caridade eficaz. Não seria fácil, sabia. Eles me haviam machucado. A sua mentira, a sua deslealdade, a conspiração do silêncio. A mesma que martirizou a santidade feroz de Bloy. Deus é o vingador. Preferível pensar nos outros. Estes, sim. Bons. Homens e mulheres, iguais a todo mundo e, entretanto, diversos. Por quê? A idéia os espiritualiza. Vejam, a idéia os espiritualiza. Não me conheciam senão de nome. Como me acolheram? Braços abertos, como um dos seus. O mesmo com Josimar. Unir. Tudo nos une e nada nos separa. Samba ou Saenz Pena? Diferença caindo por inúteis. O cristianismo fermentando. A comunhão dos santos. A sensação de que somos muitos em um e de que somos irmãos. Cada qual trazendo o seu tijolinho.
Aconteceu. Maria Cândida teria de acreditar. Minha Mãe teria que entender. Meu Pai também - coitado, sonhou todos os meus sonhos e eu, o filho, sem méritos, colhia as rosas e via o desabrochar da manhã que ele envelheceu esperando. Se meus filhos entendessem... Se entendessem - pensava comigo -, poderiam dormir tranqüilos. Porque não haveria mais bichos no telhado.

Sem comentários:

Enviar um comentário