Homenagem a Celina no centro de Mossoró. Foto de Genário Freire
Por José de Paiva Rebouças
Jornal de Fato
Celina Guimarães, o pioneirismo e a plataforma
Primeira mulher a votar na América Latina, a potiguar Celina Guimarães Viana é hoje símbolo de resistência do feminismo. Seu gesto abriu portas para o voto feminino e, consequentemente, para a quebra da hegemonia patriarcal na política. Neste mês de março, foi criada uma plataforma nacional com seu nome como suporte para a luta em favor da igualdade e liberdade da mulher brasileira.
Desde 1917 o dia 8 de março é escolhido para representar o Dia Internacional da Mulher. O movimento começou bem antes, em 20 de fevereiro de 1909, mas foi mudando de data até a atual. Em 1975, o 8 de mar&cc edil;o foi finalmente instituído como o dia de reafirmação da mulher pelas Nações Unidas. Esta data é o ponto alto das comemorações, mas há muito o mês de março tem sido todo dedicado a esta discussão.
Foi isso que nos motivou a, desde o último domingo de fevereiro, registrar a presença de algumas mulheres fortes que se tornam símbolos de sua própria história e resistência. Hoje, no entanto, ao contrário das edições anteriores, não vou falar de uma única mulher, mas de muitas que, de alguma maneira, simbolizam o protagonismo da mulher potiguar-brasileira no cenário nacional.
O motivador para esta proposta foi o jornal O Globo que no último dia 8 lançou a plataforma 'Celina', sobre mulheres e diversidades, em referência à Celina Guimarães, potiguar que foi a p rimeira eleitora brasileira em 1928. Esta pauta foi amplamente discutida com a colega jornalista Lúcia Rocha, que está escrevendo a biografia de Celina.
Por que requentar uma matéria de um grande jornal que tem enorme repercussão? Por dois motivos: 1) apoio à plataforma citada; 2) há muitas outras informações que podem ser acrescentadas nesta proposta, mas que, talvez, só interess em mais a nós de Mossoró e do Rio Grande do Norte.
A reportagem é como um produto acadêmico, ao menos segue um método parecido. Quando algo 'rende', usando o jargão na redação, a gente 'amplia', complementa, corrige ou ajus ta. O biografismo, por sua vez, é, segundo o dicionário, uma “inclinação exagerada pela prática de biografar”, que é exatamente o que fazemos e repetiremos neste texto. O biografismo tem também práxis acadêmica.
Mais do que construir o perfil de Celina, vamos aqui trazer as vozes de suas netas, também acessíveis em vídeo da matéria do O Globo, e ainda apontar o pioneirismo de outras mulheres do estado que, acreditem ou não, não são conhecidas por todos, apesar de seus nomes serem constantemente lembrados.
Na plataforma Celina, segundo O Globo, haverá espaço para reportagens, artigos, entrevistas, perfis e vídeos sobre direitos, mercado de trabalho, comportamento, expressão cultural, política, educa&cc edil;ão, saúde e violência. Muito material já disponível traz, sobretudo, histórias sobre a luta contra a violência, seja a doméstica ou a do estado contra as mulheres.
Tem ainda uma lista importante de colunistas que merecem atenção por suas trajetórias, destaques para a escritora Martha Medeiros, as jornalistas Miriam Leitão, Flávia Oliveira e atriz Luíza B runet. O projeto pode ser acessado em: www.oglobo.globo.com/celina.
Por que uma plataforma?
A justificativa deveria ser óbvia, mas como brasileiro gosta de números, o proponente da proposta traz dados interessantes. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil é o quinto país no mundo que mais mata mulheres.
Além disso, levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que a mulher recebe 77,5% menos do que os homens, considerando os salários médios. Isso piora quando a mulher é negra, onde o índice de analfabetismo &e acute; duas vezes maior em relação às mulheres brancas. Em 2015, 17,4% das negras com ensino médio estavam sem emprego, contra 11,6% da média feminina.
Quem se diz contra as cotas para mulheres na política, acha exagero e, como virou moda, vitimismo, também entendido como 'mimimi'. Mas não é. A mulher representa apenas 15% das casas legislativ as federais, embora seja 51,6% da população brasileira.
O Brasil está em 95º lugar no Ranking Global de Igualdade de Gênero, do Fórum Econômico Mundial. “Não é mimimi, isso tem efeitos concretos”, disse ao O Globo, Sandra Unbehaum, socióloga, doutora em educação e pesquisadora de gênero da Fundação Carlos Chagas.
Não é que o Globo tenha descoberto a pólvora. Não. Como disse antes, diversos espaços jornalísticos já fizeram este mesmo trabalho, alguns até com mais legitimidade. O fato de falarmos sobre este, especificamente, é exatamente a relação que foi feita com uma de nossas referências femininas, Celina Guimarães Viana.
E o que Celina tem a ver com isso?
O feito de Celina Guimarães foi extraordinário? Olhando com alguns dos olhos atuais a resposta seria não. Mas esses mesmos olhos são os que acham exagero o movimento feminista.
Alguns dizem que Celina era alguém influente, com dinheiro e isso legitimava seu ato, ao contrário de muitas outras mulheres mais simples. Outros, que ela teve a conivência dos homens para furar o bloqueio patriarcal e exigir o direito de votar. Porém, novamente, isso é mais repetição do discurso de diminuição das conquistas das mulher es.
Celina Guimarães Viana nasceu em Natal no dia 15 de novembro de 1890. Filha de Elisa Aguiar de Amorim Guimarães e José Eustáquio de Amorim Guimarães, estudou na Escola Normal de Natal, formando-se pr ofessora, em 1911. Ainda na escola conheceu o paraibano, de Pirpirituba, Eliseu de Oliveira Viana, advogado e professor, com quem se casou em dezembro deste mesmo ano.
Em 1912, foi para Acari e em 13 de janeiro de 1914 mudou-se para Mossoró, onde assumiu a cadeira infantil do Grupo Escolar 30 de Setembro. Apesar de ser conhecida como a primeira mulher a votar, Celina foi também pioneira no futebol. Em 1917, Eliseu fundou a Liga Despor tiva Mossoroense e Celina, aos 27 anos, decidiu atuar como árbitra. Foi ela quem ensinou as regras e os termos, naquela época não traduzidos do inglês, ao time de escoteiros.
Apesar de terem revisado a Constituição Brasileira em 1926, o documento não trazia explí cito o direito de igualdade de votos para ambos os sexos, mantendo a tradição de que apenas os homens eram 'cidadãos' com direito a voto. Diante disso, o então senador Juvenal Lamartine de Faria, candidato ao governo que defendia direitos cívicos para homens e mulheres, enviou telegrama ao presidente do estado, José Augusto de Medeiros, protestando o fato.
Aproveitando-se deste protesto, o deputado Adauto da Câmara apresentou emenda ao artigo 77, nas Disposições Gerais, na qual sustentou: “No Rio Grande do Norte, poderão votar e ser votados, sem distinção de sexo, todos os cidadãos que reunirem as condições exigidas por esta lei”.
No dia 25 de outubro de 1927, entrou em vigor a Lei Estadual nº 660, com a emenda Regular ao Serviço Eleitoral do Estado, acabando com a disparidade de sexos nas eleições. Um mês depois, Celina requereu, através de petição, sua inc lusão na lista de eleitores, sendo atendida pelo juiz Israel Ferreira Nunes.
Segundo Semira Adler Vainsencher, pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco, ao receber do juiz um parecer favorável, fez um apelo ao presidente do Senado Federal para que todas as mulheres tivessem o mesmo direito. O telegrama enviado dizia: “Peço nom e mulher brasileira seja aprovado projeto institui voto feminino amparando seus direitos políticos reconhecidos Constituição Federal – Saudações Celina Guimarães Viana – Professora Escola Normal Mossoró”.
Os relatos dão conta de que a partir disso, várias mulheres requereram direito de votar e obtiveram êxito, votando nas eleições de 5 de abril de 1928, para senador, porém seus votos foram anulados pela Comissão de Poderes do Senado . Segundo o pesquisador Geraldo Maia, em novembro do mesmo ano, voltaram novamente, agora para o governo do estado, e então tiveram os votos computados. Somente em 1932, no entanto, é que o novo Código Eleitoral reconheceu, em todo o Brasil, o direito do voto feminino.
Realmente, à frente de seu tempo, a professora Celina foi a primeira mulher a votar no Brasil, mas fazer justiça é necessário. Ela não foi a primeira mulher a requerer o direito de voto.
Em 1880, ainda no império, a dentista Izabel Mattos Dillon, formada na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, solicitou sua inscrição na lista de eleitores do Rio Grande do Sul e foi atendida. Em 1894, o município de Santos, no litoral paulista, promulgo u o direito ao voto feminino, mas a medida foi derrubada no ano seguinte. Em 1905, três mulheres teriam conseguido se alistar e votar em Minas Gerais.
Em tempo de República, a pioneira foi a professora natalense Júlia Alves Barbosa, no dia 24 de novembro de 1927, mas, por ser solteira, teve o pedido negado. Celina, como era casada com um advogado, teria, portanto, tido o direito concedido ao dar entrada um dia depois.
Apesar de enaltecer a ação de Celina, a força do patriarcado da época a levou a atribuir a conquista ao marido, conforme descrito em artigo da pesquisadora Semira Adler. Celina deixou registrado as seguintes palavras:
“Eu não fiz nada! Tudo foi obra de meu marido, que empolgou-se na campanha de participação da mulher na política brasileira e, para ser coerente, começou com a dele, levando meu nome de roldão. Jamais pude pensar que, assinando aqu ela inscrição eleitoral, o meu nome entraria para a história. E aí estão os livros e os jornais exaltando a minha atitude. O livro de João Batista Cascudo Rodrigues - A Mulher Brasileira - Direitos Políticos e Civis - colocou-me nas alturas. Até o cartório de Mossoró, onde me alistei, botou uma placa rememorando o acontecimento. Sou grata a tudo isso que devo exclusivamente ao meu saudoso marido”.
Independentemente de onde tenha partido tal iniciativa, Celina teve coragem de assumir a luta e, portanto, entrou para a história com mérito. “É importante que se diga que o relevante ganho político conferido às mulheres, no Rio Grande do Norte, resultou das reivindicações feministas por igualdade de direitos, lideradas pela bióloga paulista Bertha Lutz. E foi através dessa luta que Bertha conheceu Celina Guimarães Viana e elas se tornaram muito amigas. Sem sombra de dúvida, Celina era uma mulher à frente de seu tempo”, diz Semira em seu artigo.
Os conflitos entre Eliseu Viana e o governo Getúlio Vargas obrigou-lhe, junto com Celina, a deixarem o Rio Grande do Norte em 1930. De Natal, onde moravam & agrave; época, seguiram para Minas Gerais onde Eliseu assumiu, com aval do governador Benedito Valadares, o cargo de promotor na cidade de Teófilo Otoni. De lá, o casal se estabeleceu em Belo Horizonte, onde ficaram até morrer. Ele em 27 de agosto de 1960, ela em 11 de julho de 1972.
Celina e Eliseu Viana não tiveram filhos, mas adotaram um menino aos três anos de idade. Pedro Wilson Guimarães Viana é natural de Teófilo Otoni. Segundo Lúcia Rocha, sua aprovação em medicina no final da década de 1950 foi o que motivou os pais a mudarem para Belo Horizonte. Hoje, Pedro tem 87 anos. Ele é pai de Carla e Gina Viana, únicas netas de Celina e Eliseu, protagonistas de vídeo produzido pelo O Globo para a plataforma.
Carla Viana Coscarelli é formada e doutora em Letras e professora da UFMG, tendo diversos trabalhos publicações na área de letramento digital. É também uma excelente musicista. Abaixo, descrevo trechos dela e de sua irmã, Gina, sobre a importância de sua avó para a história do Brasil.
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Carla Viana, professora e neta de Celina.
É realmente uma honra saber que ela está encabeçando uma discussão produtiva sobre a mulher, sobre o lugar da mulher, sobre os direitos, os poderes. A mulher é poderosa, mas, às vezes, é tão criticada, ou ela tem um senso crítico muito grande, não sei se isso é socialmente construído, historicamente, culturalmente, mas a mulher para fazer alguma coisa é sempre um ato de coragem. A mulher é criada para ficar quietinha, para ficar caladinha, para não se expor, para não dar vexame. O direito ao voto abriu um leque de oportunidades. A mulher começou a querer: ah, então se eu posso votar, eu também posso ser candidata. Então, assim, isso abriu um leque porque: olha, eu também posso ser governadora, posso ser vereadora, senadora.
Gina Viana, professora e neta de Celina.
Eu acho o nome Celina já bem forte, vindo da história dela. 1928 é ali, e nós temos, até agora, lutas, correndo atrás de direitos que lá atrás, ela se propôs a ter o direito de votar e hoje nós estamos correndo atrás, estamos reivindicando direitos de trabalho, de integrar uma sociedade e participar como cidadã. Hoje, a mulher, além de ter a possibilidade, a capacidade de fazer milhões de coisas ao mesmo tempo, eu acho que hoje a gente é mais centrada nas questões do mundo em geral que está em volta, do mundo que a gente quer, além de agregar, fazer o melhor. Então, quando a gente faz, a gente faz be m feito. Quanto mais a gente falar disso, quanto mais a gente escutar sobre isso, além de inspirar outras pessoas, inclusive a nós mesmas, ainda mais a gente tem a capacidade de contar essas histórias. Eu conto a de minha avó, vai ter uma pessoa que conta de uma mãe, ou outra pessoa, isso faz a gente ficar feliz, eu, pelo menos, fico superfeliz.
Fernanda Viana, estudante e bisneta de Celina.
Minha bisavó foi a primeira eleitora do Brasil e era uma história! E aí, quando eu fui crescendo e fui vendo tudo o que rolava, o que realmente acontecia: feminismo, machismo e etc., e eu fui contar pra minhas amigas – isso tem pouco tempo – e ela (uma delas) falou assim: o quê?! Como assim, nossa, que demais! O feminismo está aí pra isso, para a gente se colocar no lugar que a gente sempre deveria estar, como a Celina fez. E eu acho que este projeto tem de ser sobre mulheres e não para mulheres. Tem de ser para pessoas que queiram ver que isso é uma causa extremamente importante.
Outras pioneiras na política
O voto de Celina consolidou uma luta antiga e isso teve repercussões preponderantes. Não resultou, de imediato, na resolução do problema nacional de desigualdade de gênero na política, mas perm itiu o protagonismo de muitas outras mulheres daquela época e na contemporaneidade.
Mossoró, por exemplo, tem protagonismo feminino há algum tempo e o Rio Grande do Norte, apesar de manter viva e forte a cultura patriarcal, conseguiu quebrar esta hegemonia nas últimas décadas.
Existe uma distância muito grande entre os primeiros resultados de uma luta grande e a consolidação dos direitos. Para as mulheres, precisou de séculos de civilizações e depois mais cinco anos entre 1927 e 1932. Uma prova de que sem luta não há conquista.
Como forma de registrar a importância da mulher em todos os aspectos sociais, focamos na política, acreditando ser possível mudarmos aqueles mirrados 15% de participação. Assim, registramos abaixo outros perfis pioneiros e importantes para nossa história.
Primeira vereadora
Ainda em 1928, Joana Cacilda Bessa foi eleita a primeira mulher intendente, atual cargo de vereador, de Pau dos Ferros, no alto Oeste. Filha de Apodi, na região onde hoje é a cidade de Itaú, Joana nasceu no dia 26 de setembro de 1898. Foi eleita em 1928, tomando posse em 2 de fev ereiro de 1929. Filha de José Marcolino Bessa e Emília Rosa Botão, foi a primeira mulher em Pau dos Ferros a requerer o direito ao voto em 1927. Faleceu em 1998 aos 100 anos.
Primeira prefeita
A fazendeira Alzira Soriano de Souza foi eleita a primeira prefeita do Brasil, em 1928, quando concorreu à vaga no município de Lajes, exercendo o mandato por um ano. Filha de Angicos, nasceu no dia 29 de abril de 1897 e morreu na mesma cidade em 28 de maio de 1963. À época, o The New York Times a classificou como a primeira prefeita eleita da América Latina.
Primeira deputada estadual
Nascida em Currais Novos em 1910, a jornalista Maria do Céu Fernandes de Araújo foi eleita em 1935 a primeira deputada estadual do Rio Grande do Norte e, por extensão, também a primeira deputada estadual mulher no Brasil. Seu mandato foi cassado em 1937, por discordâ ncia das ideias getulistas durante o Estado Novo. Filha de Olindina Cortez Pereira de Araújo e do comerciante Vivaldo Pereira de Araújo, Maria do Céu faleceu no Rio de Janeiro, em 2001.
Primeira deputada federal e governadora
A professora da UFRN, Wilma Maria de Faria, começou sua carreira política em 1979, sendo eleita em 1986 deputada constituinte, primeira mulher a assumir uma vaga na Câmara Federal pelo Rio Grande do Norte. Em 2002, mantendo o pioneirismo, foi eleita a primeira governadora da história do Rio Grande do Norte. Nascida em Mossoró no dia 17 de fevereiro de 1945, faleceu em decorrência de câncer em 2017, exercendo o mandato de vereadora de Natal.
Primeira Senadora
Uma das filhas mais emblemáticas de Mossoró, Rosalba Ciarlini Rosado nasceu em 26 de outubro de 1952. Começou sua trajetória política em 1988, quando foi eleita prefeita de Mossoró. Em 2006, foi eleita primeira mulher senadora da história do Rio Grande do Norte. Filha de Clóvis Monteiro Ciarlini e Maria da Conceição da Escóssia Ciarlini (Conchecita) é médica por formação. Foi eleita governadora em 2010 e atualmente está novamente no cargo de prefeita de sua cidade, pela terceira vez.